Benedetto Varchi, por Tiziano (Museo de Historia del Arte de Viena, 1536-1540).
Benedetto Varchi
Benedetto Varchi (Florencia, 1503 – 1565), humanista, escritor e historiador italiano.
De familia venida de Montevarchi, su padre quiso que aprendiera un oficio manual y le hizo frecuentar diversos talleres, pero al cabo decidió enviarlo a la escuela, vista su predisposición literaria. En Florecia frecuentó los Orti Oricellari y más tarde, en Pisa, empezó los estudios para hacerse notario. Volvió a Florencia, y con su amigo Piero Vettori y la mayor parte de los jóvenes oligarcas influidos por los orti oricellari, tomo parte activa en la República de Florencia, entre 1527 y 1530. Al volver los Medici, huyó, como tantos otros, y se instaló en Padua en 1537, al servicio de los Strozzi, y más tarde fue a Bolonia (1540).
En 1543, Cosme I de Médicis lo llama de nuevo a Florencia, le da una pensión y le encarga escribir la historia de los últimos años de la república. Cumplió el encargo redactando su Storia fiorentina, que abarca los años 1527 a 1538, en 15 tomos (que no se publicó hasta 17212 ).
Pronunció, en 1546, dos discursos célebres. El primero dedicado a Miguel Ángel. El segundo tuvo como tema la paragona (el problema de la preeminencia de las distintas artes). Trató de precisar la nobleza en el arte, a establecer cual, entre la escultura y la pintura, es más noble, y a precisar las similitudes y las diferencias entre la poesía y la pintura. Las dos conferencias se publicaron en 1549 con el título Due lezzioni sopra di m. Benedetto Varchi,3 incluyendo también las respuestas de Vasari, Pontormo, Bronzino, Benvenuto Cellini, Niccolò Tribolo, Francesco da Sangallo y Giovanni Battista del Tasso a una encuesta hecha por Varchi sobre el problema de la paragona.
Por entonces resultó implicado en diversos escándalos sexuales (incluso de pedofilia), que tuvieron consecuencias judiciales y le supusieron dificultades tanto económicas como de reputación.
Estuvo muy unido a Lorenzo Lenzi, futuro obispo y nuncio del Papa en Francia. Broncino hizo un retrato de Lorenzo cuando tenía 12 años, probablemente por encargo de Varchi.
Una conversión tardía (no ajena a su deseo de rehabilitación pública) y una curiosidad por los asuntos religiosos, le llevaron a una crisis espiritual, que vivió con desasosiego, y al deseo de hacerse sacerdote. Ordenado sacerdote, el gran duque, que nunca dejó de mostrarle su favor, le asignó un puesto en la iglesia de Montevarchi que no pudo ocupar, ya que murió en su villa de Topaia, en Castello, donde vivía desde hacía diez años.
El discurso fúnebre, en el funeral oficial, fue pronunciado por Lionardo Salviati.
Benedetto Varchi, escribió una carta a Miguel Angel Buonarotti, el 12 de febrero de 1560, en nombre de todos los florentinos diciéndole:
...toda esta ciudad desea sumisamente poderos ver y honraros tanto de cerca como de lejos... Vuestra Excelencia nos haría un gran favor si quisiera honrar con su presencia su patria.
Bibliografía
Benedetto Varchi, en "L'Omnibus Pittoresco", a.III (1840), julio, n.16, pp.121-122.
F.G., Benedetto Varchi, en "Poliorama Pittoresco", n. 45 del 20 de junio de 1840, pp. 363-364.
Vita di Benedetto Varchi, en Storie fiorentine, Le Monnier, Florencia 1857, vol. I.
Giovanni Dall'Orto, "Socratic Love" as a Disguise for Same-sex Love in the Italian Renaissance,
Antonfrancesco Grazzini, Le rime burlesche edite e inedite, Sansoni, Firenze 1882.
Guido Manacorda, Benedetto Varchi. L'uomo, il poeta, il critico, "Annali della R. Scuola normale di Pisa", XVII 1903, part. II, pp. 1-161. Ristampa anastatica: Polla, Cerchio (L'Aquila) 1987.
Giorgio Pedrotti, Alfonso de' Pazzi, accademico e poeta, Tipografia Cipriani, Pescia, 1902.
Umberto Pirotti, Benedetto Varchi e la cultura del suo tempo, Olschki, Florencia, 1971.
Alberto Losa, Historia de la literatura, Benedetto Varchi, Alicante, España, 1965.
SONETO
Esta es, Tirsis, la fuente do solía
Contemplar su beldad mi Filis bella:
Este el prado gentil, Tirsis, donde ella
Su hermosa frente de su flor ceñía.
Aquí, Tirsis, la vi cuando salía
Dando la luz de una y otra estrella:
Allí, Tirsis, me vido, y tras aquella
Haya se me escondió y así la vía.
En esta cueva de este monte amado
Me dio la mano, y me ciñó la frente
De verde yedra y de violetas tiernas.
Al prado y haya y cueva y monte y fuente
Y al cielo, despartiendo olor sagrado,
Rindo por tanto bien gracias eternas.
Francisco de Ja Torre
(47) La primera edición es la de Colonia, 1731; y la tradujo al francés Mr. Refnier (Paru, 1754, 3 TOII. in-l.')
Poemas de mármore. Michelangelo escultor e poeta nas Lezioni de Benedetto Varchi
Por Luciano Migliaccio
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
Universidade de São Paulo
Em 1547, o filósofo florentino Benedetto Varchi pronunciou uma série de conferências, chamadas de Lezioni, sobre o soneto de Michelangelo "Non há l'ottimo artista alcun concetto" e sobre a questão da superioridade da escultura, da pintura ou da poesia na hierarquia das artes. Varchi acrescentou ao texto das conferências, publicado em 1550, cartas de famosos artistas florentinos e do próprio Michelangelo sobre essa questão. A partir das Lezioni de Varchi, este escrito pretende contribuir para entender de que maneira a poesia de Michelangelo exprime seu pensamento em relação à escultura e à criação artística e como isso influenciou a interpretação da obra do mestre dada pelo teóricos da época.
Palavras-chaves: história da crítica de arte, arte italiana do Renascimento, história da escultura.
In 1547 the Florentine philosopher Benedetto Varchi gave some lectures, denominated Lezione about Michelangelo's sonnet Non há l'ottimo artista alcun concetto and the issue of superiority of sculpture, painting or poetry in the hierarchy of arts. Varchi added to his lectures, published in 1550, letters written by famous Florentine artists and by Michelangelo himself. Taking Lezione de Varchi as a point of departure this text intend to contribute to understand how Michelangelo's poetry express his thought toward sculpture and the artist creation and how it has influenced the theoretical interpretation of the master's work at his time.
Keywords: history of the art criticism, high Renaissance italian art, history of sculpture.
A atividade poética de Michelangelo é bem conhecida. Desenvolveu-se ao longo de todo seu percurso de escultor, pintor e arquiteto, desde as primeiras composições, de 1502, até as últimas, posteriores a 1560. A reavaliação da lírica de Michelangelo, depois dos julgamentos negativos de Croce, deve-se a críticos e poetas do século XX, como Ungaretti e Montale, Binni, Contini e Testori, que chegaram a colocar o artista no topo dos valores da literatura italiana do seu tempo. Giulio Carlo Argan, num ensaio intitulado Michelangelo artista e poeta colocou o problema da relação entre arte figurativa e atividade literária na personalidade do mestre. Essa relação, como bem percebe Argan, não é limitada à simples exploração do tema retórico Ut pictura poësis, ressaltado no importante e completo estudo de autoria de Clemens. Para Michelangelo, que nunca julgou-se um literato, a poesia é uma necessidade interior, unida de forma inseparável, com a expressão da própria individualidade de artista. Às vezes a poesia é uma projeção da atividade criativa, como acontece num verso de 1503 escrito obre uma folha de papel onde aparece também o desenho do braço do Davi: "Davit con la fromba e io coll'archo"1 que compara a luta do herói bíblico contra o gigante Golias àquela do artista contra o bloco de mármore. Muitas vezes a prática criativa torna-se o espelho de uma situação existencial como nos sonetos "Non ha l'ottimo artista alcun concetto" e "Si come per levar donna si pone"2.
A relação entre pintura e poesia é de tamanha importância em Michelangelo, que já no século XVI, foi tratada pelo filósofo Benedetto Varchi em duas conferências, chamadas de Lezioni, que foram pronunciadas em Florença em 1547 e depois publicadas em 1550, no mesmo ano e pelo mesmo editor das Vidas de Giorgio Vasari, Lorenzo Torrentino.
Cabe refletir um pouco sobre a estrutura das Lezioni. A primeira é um comentário ao soneto "Non ha l'ottimo artista alcun concetto" onde a escultura é comparada à relação amante-amado. A segunda é formada por três disputas sobre a comparação entre as artes e, em particular, entre pintura, escultura e poesia, o famoso tópico do "Paragone". O prefácio e a primeira das três disputas referem-se a questões filosóficas ligadas à interpretação do soneto. Como apêndices, são acrescentadas algumas cartas de célebres artistas florentinos dedicadas também ao tema da comparação entre pintura e escultura, a última das quais é do próprio Michelangelo. O mestre tem assim a primeira e a última palavra, antes como poeta e depois como escultor. Toda a disputa converte-se assim numa disputa sobre a arte de Michelangelo, construída como um movimento circular que vai do poeta ao artista para depois retornar ao poeta. É importante dizer que isso acontece quando, em Florença, estão sendo postas em obra as esculturas da Sagrestia Nuova na igreja de San Lorenzo, deixada inacabada por Michelangelo e completam-se as obras do saguão da Biblioteca Laurenziana. Em Roma, então, após do choque do descobrimento do Juízo Final da Sistina, Michelangelo está acabando a última versão do túmulo de Júlio II e os afrescos da Capela Paolina no Vaticano. Como é possível ver nas cartas dirigidas a Varchi pelos artistas mais avisados, Cellini e Pontormo, a questão do "paragone", longe de ser apenas uma questão teórica abstrata, coloca sobretudo o problema crítico da relação entre pintura e escultura na obra de Michelangelo. Essa relação é explicitada pelo soneto e pela carta estudados por Varchi, estabelecendo uma preeminência substancial da escultura na cultura figurativa florentina, preeminência mal dissimulada pela eqüidistância da posição filosófica de Varchi.
O objetivo deste escrito é contribuir e entender de que maneira o pensamento de Michelangelo sobre as próprias esculturas e sobre a escultura em geral, como também sobre a relação entre esta e as outras artes, seja manifestado na poesia. Por outro lado, tentaremos ver como esse pensamento é interpretado pelos contemporâneos que, como Varchi, utilizam as categorias estéticas platônicas e aquelas da Poética de Aristóteles, descoberta há pouco tempo.
Na crítica atual, a análise das Lezioni de Varchi costuma enfocar o tipo de teoria da arte que emerge do enquerito do filósofo florentino, como acontece no belo livro de Leatrice Mendelsohn, publicado em 19823. A estudiosa americana conclui que pela primeira vez esta disputa envolve artistas e literatos com o uso das mesmas categorias intelectuais, e que este uso se reflete na própria prática artística. Marco Collareta, por sua vez, no seu artigo intitulado Teoria e pratica del paragone, evidencia como esse tipo de escrito é um instrumento quase de crítica militante na época, que perderia grande parte de seu valor se extrapolada do contexto concreto da cultura figurativa onde surgiu4. É preciso, portanto, considerar as Lezioni como conjunto e recolocá-las dentro do clima cultural que as gerou, do qual não podem ser excluídos nem a atividade dos artistas, nem os efeitos produzidos na realidade pelas suas obras.
O comentário de Varchi ao soneto de Michelangelo lembra os comentários aos poemas de Dante e de Petrarca, pronunciados nas salas de aula de Florença, que colocaram os grandes poetas modernos ao mesmo nível dos clássicos e dos filósofos da antigüidade, tornando assim possível a abertura da questão do uso da língua toscana como língua de cultura, costituindo a base de uma unidade cultural italiana. A escolha de Varchi, portanto, contém um sentido profundo: restabelecer a centralidade da contribuição florentina no momento em que o projeto renascentista amplia-se da Itália às cortes da Europa inteira. O que é novo é o fato de que, pela primeira vez, essa centralidade é representada pela figura de um artista, Michelangelo, que encarna o diálogo entre a literatura e a arte. Isso será uma das componentes da instituição da Accademia Florentina, um projeto que se concretizará a partir da celebração dos funerais do mestre.
O soneto que Varchi comenta faz parte de um grupo de três composições relacionadas por tema, todas dedicadas à Vittoria Colonna e datadas por Gilardi de 1538-1541 a 1544.
O primeiro é o soneto:
"Non ha l'ottimo artista alcun concetto
ch'un marmo solo in sé non circoscriva
col suo soperchio, e solo a quello arriva
la mano che ubbidisce all'intelletto.
Il mal ch'io fuggo il ben ch'io mi prometto
in te, donna leggiadra, altera e diva
tal si nasconde, e perch'io più non viva
contraria ho l'arte al disiato effetto5.
O segundo é um mottetto, uma composição para música, de caráter religioso:
"Si come per levar, donna, si pone
in pietra alpestra e dura
una viva figura
che là più cresce u'più la pietra scema
tal alcun'opre buone
per l'alma che pur trema
cela il superchio della propria carne
con l'inculta sua cruda e dura scorza6.
O terceiro, também para música, tem um caráter profano:
"Non pur d'argento o d'oro
vinto dal foco esser po'piena aspetta
vota d'opra perfetta
la forma che sol fratta il tragge fora;
tal io col foco ancora
d'amor dentro ristoro
il desir voto di beltà infinita
di costei ch'i'adoro
anima e cor della mia fragil vita"7.
Todos os poemas têm em comum a comparação entre o processo criativo da forma na escultura e o contraste entre a imperfeição do amante e a perfeição do objeto do desejo amoroso. No primeiro, o conceito é identificado com a figura que é vista potencialmente presente no bloco, mas não pode ser realizada perfeitamente devido à insuficiência da mão do artista para chegar ao efeito desejado. No segundo, a carne oculta o ideal, como o mármore esconde as linhas que limitam os membros das figura, revelando-se somente "per forza di levare", retirando a matéria. Por isso a figura emerge como um contraste entre o cheio do bloco e o vazio. No terceiro poema o mesmo tema é relacionado com a escultura em metal. A figura existe como vazio na forma e emerge, cheia, somente quando a forma é quebrada depois de ter sido preenchida pelo metal precioso fundido pelo calor do fogo. A antiquíssima metáfora do desejo como vazio e do amor que o preenche adquire uma dimensão visual e tangível.
Não conheço estudos que tratem o conjunto dos poemas de Michelangelo dedicados à escultura, ou aos conceitos contidos nestes três em particular. Justamente, a partir dos estudos de Panofsky, é comum a interpretação do primeiro soneto baseada nos conceitos neoplatônicos derivados de Plotino. A interpretação filosófica é a mais legítima: o próprio Varchi assimila Michelangelo à série de pensadores que, desde Platão a Descartes, passando por Plotino, utiliza a metáfora da estátua para demostrar um conceito.
Porém lembro-me do sorriso irônico que aparece na carta de Michelangelo a Varchi que conclui a disputa, quando se inclina às razões expostas "falando filosoficamente" pelos estudiosos florentinos. A carta sobre a escultura pode ser lida como a palavra definitiva do artista sobre a disputa e o comentário varchiano. Como escreve Paola Barocchi:
Michelangelo não apenas coloca sobre planos distintos suas convicções de artista e a filosofia de Varchi, mas percebe que a solução proposta por Varchi não pode diminuir as problemáticas estilísticas dos artífices para os quais a pintura e a escultura não são entidades abstratas, mas experiências individuais. Michelangelo repete muitas vezes sua vontade de falar não como literato mas como escultor. Nisso ele fica tenazmente vinculado a uma específica tradição florentina, apegada ao uso da língua vulgar, surgida no interior dos ateliê, que olha com desconfiança à interpretação puramente filosófica da obra de arte.
O mesmo conceito é expresso por Berni num poema em louvor de Michelangelo:
E' dice cose, voi dite parole
cosí moderni voi scarpellatori
ed anche antichi, andate tutti al sole8.
Isso talvez nos autoriza a sugerir uma interpretação mais literal dos textos do artista. O conjunto das imagens de Michelangelo gira ao redor do tema da imperfeição, isto é, do inacabado. Todavia, a imperfeição da obra aparece em relação à perfeição do modelo, que é o conceito, a imagem mental da figura. A figura, por sua vez, apresenta-se como linhas que limitam o cheio do mármore ou o vazio da forma. Mas por isso mesmo, a matéria do bloco e na forma não representam apenas a parte negativa que tem de ser eliminada. Pelo contrário, ela permite visualizar a figura perfeita e isolada dentro de um espaço ideal que pode ser pensado só como sólido geométrico, o bloco. A visão da imagem não depende da ação física da luz, como postula toda a tradição matemática e prospética florentina até Leonardo, mas é o resultado de uma intuição mental. A figura "viva", isto é, que possua o relevo - seguindo a tradição de Alberti bem conhecida por Michelangelo - só pode ser pensada como delimitação dos contornos a partir da relação com um espaço ideal que é bloco e matriz ao mesmo tempo. Daí a importância das noções de "contorno" (limite) e de "rilievo" (relevo), assim como de aquela de "figura", que são ressaltadas ao longo do texto dos poemas e da carta de Michelangelo a Varchi.
Se a criação da forma é um ato mental, uma intuição, que não deriva da ação da realidade fenomênica, Michelangelo vê nela a confirmação da natureza transcendente, divina, da criação artística. Daí a extrema importância atribuída ao modelo e sucessivamente ao desenho, que adquirem um peso cada vez maior a partir da fase de projeto da Sagrestia Nuova de San Lorenzo.
Eu digo que a pintura parece considerada tanto melhor quanto mais aproxima-se ao relevo (...) por isso costumava ter a opinião que a escultura fosse a lâmpada da pintura, e que de uma a outra existisse aquela diferencia que existe entre o sol e a lua9.
Utilizando uma imagem criada por Dante, Michelangelo identifica a escultura e a vida com o relevo, assim como faz no mottetto para Vittoria Colonna onde fala de uma "viva figura" emergindo do bloco, onde a matéria é retirada. O conceito de relevo porém é algo comum à pintura e à escultura: coloca-se como ponto de união entre as duas artes, embora seja realizado com meios técnicos diferentes. Por isso o artista ressalta a maior dificuldade da escultura devido à maior resistência (impedimento) dos materiais. Ele diz na carta: "Eu chamo escultura aquela que se faz retirando o material"10, utilizando uma expressão idêntica àquela do mottetto "Come a forza di levar, donna, si pone". Aqui a matéria é sinônimo de resistência que deve ser vencida pela força física.
Varchi, por sua vez, trata o texto como um teorema filosófico, o ótimo artista é ambiguamente Deus e o autor comparado ao amante que é, ao mesmo tempo, um escultor. A relação entre o amante e a mulher-Diva pode ser comparada àquela entre o escultor e o bloco. A dureza torna-se uma qualidade, novamente ambígua, do ser humano e do material. O bloco, como o coração da amada, contém mais de uma imagem potencial. A imagem que o artista se esforça para revelar deve se adequar só a uma delas. O artista começa então um processo de seleção. Quando o conceito imaginado pela mente adequa-se com aquele que está ocultado no mármore, aparece a revelação da idéia. Da mesma forma, o amante deve se identificar com a amada, adequar seus pensamentos aos dela para realizar assim o ideal do amor que está no seu coração. Mas isso é apenas o primeiro passo. A realização do conceito depende da capacidade técnica do artista. A força criativa do artista está então anteriormente no intelecto, depois passa à mão, se ela é capaz de realizar as intenções.
No momento em que Varchi escreve suas Lezioni, como dissemos, em Florença é inaugurada a Sagrestia Nuova. O filósofo de fato inclui na primeira conferência dois sonetos dedicados a Lorenzo Lenzi e a Bartolomeo Bettini em louvor das duas figuras femininas que estão nos túmulos da capela, a Aurora e a Noite. As duas figuras nuas que, como é sabido, causaram uma impressão notável no público florentino pela sua ousadia e pela sua sensualidade, são apresentadas como um exemplo no qual o ideal amoroso da imaginação é realizado perfeitamente pelo artista graças à sua habilidade de execução, fazendo com que o espectador fique apaixonado pelas obras:
"Più non mi par, Bettin, del dritto fore,
leggendo che de' Marmi huom s'innamora
poi che l'oscura Notte e l'Aurora
risplendente rimirai del gran Scultore
divino ingegno e man più ch'altre dotta
ha il ciel, più che mai largo, in un congiunto
perché l'Arte non ceda alla Natura"11.
Sabemos que Bartolomeo Bettini era quem encomendou a Michelangelo o desenho representando Vênus e Cupido que também é citado nas Lezioni de Varchi pelo semelhante poder de sedução que lhe é atribuído. Então ainda estamos dentro da reflexão sobre a relação pintura e escultura em Michelangelo. Varchi chama o artista de "gran scultore" e marca mais uma vez a preeminência da estatuária aludindo aos conceitos presentes no soneto dele: o homem apaixona-se pelos mármores, as estátuas são frutos da colaboração do engenho divino e da mão educada. Colocada assim a centralidade da escultura na personalidade de Michelangelo, podemos talvez repensar num problema: os conceitos do mestre são claramente realizados nas pinturas, mas, excluindo o Davi, destinado à celebração da República Florentina e então politicamente não grato aos Medici novamente no poder, as obras do escultor existentes em Florença são todas inacabadas. Sem contar as obras da mocidade como a Luta dos Centauros ou a Madona da escada, o Tondo Pitti e o Tondo Taddei, dos gigantescos apóstolos para a catedral não restava que o São Mateus, das esculturas para a fachada de San Lorenzo restavam apenas os desenhos dos blocos a serem escavados em Carrara, os grandes escravos destinados ao túmulo do papa Júlio II eram enormes esboços que lutavam para livrar-se do peso da matéria. Com a decisão de colocar na obra as figuras inacabadas da Sagrestia Nuova, abria-se o espaço para colocar também a questão da relação entre idéia, modelo e obra acabada. A descrição do processo criativo da escultura nos poemas de Michelangelo, transferindo o enfoque da obra acabada ao processo de realizar o modelo na matéria, do produto aos processos mentais do artista, permitia formular esse problema de uma maneira nova. Para fazer isso, Varchi aproveita-se das categorias aristotélicas de forma atual e forma potencial, desviando-as da área da metafísica para a estética. No clima de recíproco relacionamento de filosofia e arte inaugurado pela disputa varchiana, isso desemboca numa reafirmação da preeminência da escultura sobre a pintura, mas com um acentuação do papel do modelo e da ideação em detrimento do trabalho de realização da obra, alheio ao pensamento de Michelangelo, que será a herança da geração posterior de artistas até Giambologna.
O mestre, por sua vez, parece colocar uma distância infinita entre si próprio e as disputas que se abrem para a gestão de sua herança espiritual, quando conclui a carta a Varchi com estas palavras:
Infinitas coisas, que ainda não foram ditas, poderiam se dizer sobre semelhantes ciências, mas, como disse, precisariam de tempo demais e eu tenho pouco, porque não apenas sou velho, mas quase do número dos mortos12.
NOTAS
1 Davi com a funda e eu com o arco.
2 "Não tem o ótimo artista algum conceito" e "Como sacando, mulher, se coloca" Michelangelo. Rime, Ed. M. Girardi, Bari, Laterza, 1960, nn. 151 e 152.
3 MENDELSOHN, L.. Paragoni. New York, 1982. [ Links ]
4 COLLARETA, M.. "Teoria e pratica del paragone". In La Pittura in Italia. Il Cinquecento. Milano, 1993, vol. II, pp. 512 ss. [ Links ]
5 "Não tem o ótimo artista algum conceito/ que um só mármore em si não circumscreva/com o que sobra, e a ele só chega/ a mão que obedece ao intelecto./ O mal que fugio, o bem que eu me figuro/ em você, mulher bela, soberba e divina/ assim se esconde/ e como para que eu não viva/ a arte contraria o desejado efeito."
6 "Como retirando, mulher, se coloca/ numa pedra rochosa e dura/ uma viva figura/ que mais emerge onde mais a pedra falta/ assim algumas obras boas/ para a alma que treme/ esconde a sobra da própria carne/ com a sua casca inculta, rude e dura."
7 "Como espera por ser preenchido da prata ou do ouro vencidos pela força do fogo o molde vazio de alguma obra perfeita, que só quando for quebrado a mostra, assim eu com o fogo de amor dentro de mim atenuo o desejo vazio da beleza infinita dessa mulher que adoro, ânima e coração da minha frágil vida."
8 "Ele fala coisas, vocês falam palavras/ assim vocês modernos marmoreiros/ e antigos também, andem tomar o sol."
9 "Io dico che la pittura mi par più tenuta buona quanto più va verso il rilievo... e peró a me soleva parere che la scultura fussi la lanterna della pittura, e che dall'una all'altra fussi quella differenza che è dal sole alla luna". "Lettera a Benedetto Varchi". In Scritti d'arte del Cinquecento. a c. di Paola Barocchi, vol. I, Milano, Napoli, 1960, p. 102. [ Links ]
10"Io intendo per scultura quella che si fa per forza di levare", Ibidem.
11 "Já não me parece mais, Bettini, fora de lugar/ quando leio que o homem se apaixona pelos mármores/ depois que vi a obscura Noite e a Aurora resplendente do grande escultor/ divino engenho e mão mais erudita das outras/ deu o Céu, mais generoso que nunca, conjuntos num só homem, como para que a srte não seja inferior à Natureza."
12 "Infinite cose, e non più dette, ci sarebbe da dire di simili scienze, ma come ho detto, vorrebbono troppo tempo e io n'ho poco, perché non solo sono vecchio, ma quasi nel numero de'morti" Michelangelo, op. cit.
.
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